Não à idiotização da infância!

Ultimamente tem-se ouvido falar, até que com certa frequência, da “adultização” da infância, com rituais precoces, festas luxuosas quase debutantes que perdem o valor do ser e do construir, presentes que anulam o poder do conviver e do esperar. Porém, pouco se fala em outro fenômeno que vem afetando diretamente a cultura da infância, sorrateiro e repleto de boas intenções, que tem invadido a maioria dos lares e das escolas: a idiotização da infância. Basicamente, significa supor, ainda que inconscientemente, que criança é um ser de menor capacidade cognitiva e que, por isso, impressiona-se facilmente pelo que é tolo, repleto de estímulos e pronto. Mas a criança, de tão perspicaz e ávida por descobrir, ainda assim sobrevive e nos mostra a que veio. Porém, por que dificultar quando podemos promover seu desenvolvimento pleno?

Criança pode escolher e exercitar sua opinião

A primeira conformidade a ser rompida é a imagem tradicional de criança, tão consolidada, de ser frágil, incapaz. Por exemplo, é comum compararmos de forma elogiosa as crianças a “criaturas angelicais” (“Crianças são como anjos!”), o que é uma grande e perigosa inverdade. Crianças são pessoas. Sim, pessoas como nós, potentes e em formação! Não são santas, celestiais, incapazes. São argumentativas, questionadoras, sinceras, às vezes incômodas, pois sua sensibilidade, avidez, perspicácia e curiosidade pode nos desestabilizar.

Outro exemplo de nosso equívoco é o fato de infantilizarmos nossa fala, expressões faciais e até timbre de voz ao nos dirigirmos aos pequenos, preenchendo nossos enunciados de diminutivos para “motivar” e nos aproximar dos pequeninos. Obviamente, podemos expressar emoções quando estamos com alguém, como ternura, surpresa, encantamento, e com a criança não é diferente. Porém, inapropriado é supor que ela se sentirá mais acolhida quando falarmos de forma reduzida, minimalista e infantilizada com ela. Trata-se de novamente de uma idiotização da infância repleta de boas intenções. Criança deseja mostrar o quanto cresceu, é capaz, inovadora. E nós, o que fazemos? Tolhemos abruptamente sua capacidade supondo que somos educadores de referência. Criança compreende o que dizemos. Como pode ela evoluir se minimizamos sua capacidade? Em quem irá se apoiar como modelo? E, ainda, como poderá se desenvolver corretamente se nós, que deveríamos ter um vocabulário amplo e adequado, o escondemos dela e nos portamos como crianças que não somos? Criança entende pelo contexto!

Liberdade criativa para ser e estar no mundo

Interessante também a ideia de fragilidade concebida pelo fato de que tudo supostamente “traumatiza” a criança. Sim: um livro de qualidade, mas com passagens tensas, é assustador, portanto, fora! A briga com o amiguinho, é intimidadora, portanto, tire-o de vista. O brinquedo do parque? Muito perigoso! Exclua do roteiro, e lá se vai, em nome de um arranhão, a oportunidade de desenvolver-se motoramente. E assim, as frustrações da vida tornam-se mais e mais insuperáveis, pois não há ferramentas para transpo-las, tampouco exercício de fortalecimento emocional ao longo da infância. Mais uma vez, idiotizamos nossos filhos na tentativa de protegê-los supondo que não são capazes de defender-se dos intempéries da vida.

Outro exemplo bastante comum pode ser representado pelas fachadas de buffets e, o pior, até de instituições de Educação Infantil, repletas de personagens, desenhos prontos, o que denuncia duplo equívoco adulto: a ideia de que a criança aprecia esse tipo de “arte” e a concepção de estética estereotipada adultocêntrica.
Que tal, por exemplo, se houver condições locais, levar a escola para a cidade, em mostras ao ar livre? Ou então promover mostras de Arte e produções infantis que elevem a cultura da infância? O que se pretende tornar visível é a criança, não o fazer do adulto. Afinal, educação é oportunidade de emancipação do indivíduo, é um recurso para o saber, não para o reproduzir. Que escola legitima de fato a infância se não abre margem aos estilos pessoais?

As possibilidades estéticas não se limitam aos estereótipos adultos

A criança interage no seu mundo naturalmente com confiança, com diferentes processos internos e externos, independentemente do adulto, mas este, o ambiente e as relações podem favorecer ou prejudicar fortemente seus processos de descoberta. Isso porque ela traduz o vivido com cotidianidade, por isso faz-se necessário compreender o significado de assumir o papel de verdadeiro educador, seja este professor ou pai, e não de transmissor de conteúdos sistematizados e pré-conceitos sobre uma infância tola e incapaz. Datas comemorativas, por exemplo, podem sr um prato cheio para super estimular os pequenos com ideias consumistas e fantasiosas que a própria sociedade já dá conta de fazer, em detrimento do fortalecimento de valores e da consolidação das próprias relações humanas.
Precisamos nos reconhecer como seres sociais, mergulhar em conexão com outros mundos, e perceber que as crianças são parte essencial dele. Educação é terreno fértil de encontro, liberdade, solidariedade, valor da paz.

Valores universais podem ser trabalhados em casa e na escola

Vamos pensar, então, sobre quem é a criança de quem estamos falando. Todo educador deve refletir sobre os tempos individuais, coletivos, sobre os contextos de sua criança. Como ela aprende e como interage? Qual o papel da escola e do educador? Da família? E como anda sua escuta para as verdadeiras necessidades da infância? Devemos lembrar sempre que escuta pressupõe disponibilizar-se pelo outro, saber esperar, dar tempo, sustentar investigações, entender qual é o desejo, a conquista.
Enfim, se tomarmos o exemplo do teórico Brunner, ao invés de idiotizar a criança oferecendo-lhe tudo pronto e resguardando-lhe o assistencialismo, vamos permitir que esta seja vista como ser ativo, comprometida na busca de sentido nas suas ações, como ser que não simplifica, mas que se revela no encontro com o outro e que coloca sua ação em níveis perceptíveis diferentes, entrelaçados, mantidos juntos. Enfim, crianças são sensíveis às relações, por isso o agir, o viver, o arriscar-se, o interagir com a natureza, a experiência sensorial e pensamento narrativo são fundamentais no seu aprendizado. Até porque, inteligente como ela é, precisa aprender. E a aprendizagem pressupõe um processo de compartilhamento de cultura, de descoberta, de confronto, e estar junto.

 

About the Author

A autora do site é nascida na cidade São Paulo, e o Curso Normal/ Magistério foi a primeira opção na área docente antes do ingresso na faculdade de Letras da USP, onde concluiu a dupla habilitação português/ alemão em parceria com a EDUSP. Em seguida, cursando pedagogia e a primeira especialização em Moralidade e Relações Interpessoais na Escola, a formação continuada prosseguiu como uma premissa maior, com cursos como Psicopedagogia, Neuropsicopedagogia, Psicomotricidade e especializações como Bilinguismo e Educação Infantil. Atualmente, também é mestra em Ciências da Educação. Paralelamente, atuou continuamente na Educação Infantil, onde se estabeleceu há mais de 20 anos, assumindo diversas funções até atuar na diretoria de segmento. Também ofereceu diversos cursos e formação por meio de assessoria pedagógica especializada, é ávida leitora, apaixonada pela experiência educativa de Reggio Emilia e considera-se uma eterna aprendiz, seja em contextos locais ou internacionais.

One Comment

  1. Jorseane R. 7 years ago

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