Os contos e as histórias assustadoras. Contá-las ou deixá-las de fora?

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Muitos pais se queixam de que seus filhos apresentam medo de determinadas histórias infantis, seja por causa da temida bruxa, lobo, ou qualquer outro elemento do enredo. É comum que a escola se depare com situações desconfortáveis em que a família proíbe o acesso da criança a determinada obra, alegando que está estaria lhe causando distúrbios psicológicos, interferindo no sono ou simplesmente a assustando em demasia. Muitas obras são questionadas, visto que se espera sempre ações que configurem incentivo a valores positivos, tais como amizade, solidariedade, bem como um final feliz demarcado. Contudo, nem sempre é isso que ocorre. As escolas aparentemente têm selecionado livros com imagens fortes, e enredos questionáveis, como o famoso e clássico “Bruxa, bruxa”, por exemplo.  Como os pais devem proteger seus filhos?

A questão ideal está embutida na própria pergunta. Proteger não é a solução, muito pelo contrário. Tais enredos são necessários e saudáveis. Há tempos que o homem conta histórias… E há muito tempo, quando ainda nem se tinha ideia da possibilidade de existir a telecomunicação, quando os livros representavam grande parcela das opções de entretenimento na esfera familiar, os contos de fadas já eram amplamente difundidos, seja por razões disciplinares, religiosas ou sociais.

Com o passar das gerações, inúmeras reformulações transformaram os contos, mas o caráter fantástico era ainda encarado por muitos como “mentira”. Alguns escritores como Basílio, Charles Perrault, Jacob und Wilhelm Grimm, Andersen, passaram seus contos para a tradição oral, que perduram até a atualidade, mesmo com mudanças. Hoje, porém, já há estudos que revelam a sua importância para o desenvolvimento cognitivo-emocional das crianças.

A escola deve garantir acesso a acervo de qualidade, e não apenas aos livros de imagens idealizadas
A escola deve garantir acesso a acervo de qualidade, e não apenas aos livros de imagens idealizadas

Belos? Talvez nem tanto se os observássemos unicamente sob a limitada perspectiva moderna; contudo, inegavelmente densos, repletos de significação e valores notórios até hoje. E, ao contrário da vã preocupação de muitos de que os contos não falam para a nossa sociedade, estes são atemporais, e até hoje permitem que as crianças projetem inconscientemente parte delas mesmas em várias personagens do enredo. E isso as deixa seguras. Afinal, como encarar as tragédias do mundo sobre as quais os adultos não falam abertamente, senão amparadas pelas páginas de um livro, que se torna cada vez mais previsível? O livro é uma forma segura de controlar os perigos do mundo hostil e misterioso que nos cerca. E não ão os contos que são úteis aos pequenos. Histórias de qualidade sempre o são. E se tiverem os vilões, com os quais os pequenos controlam os sentimentos de medo, ainda mais interessante.

Fosse diferente, os contos e certos personagens não existiriam até os tempos atuais. É certo que há mudanças significativas em muitos deles, como adaptações em que a censura à retaliação do Lobo Mau faz-se presente – enquanto contraditoriamente as crianças assistem passivamente aos telejornais em que muitas vezes o protagonista da abordagem não é ninguém menos do que um violentador e, em casos tão bizarros quanto este, assassinos de seus próprios progenitores.

Ainda assim, a cultura procura mascarar de modo demasiadamente otimista o lado obscuro e perverso do homem, tornando a vida fácil e apenas encantadora. Freud mesmo já buscava uma luta contra a natureza problemática do homem, sem recorrer ao dito escapismo.

Chegamos, pois, à luz da psicanálise dos contos de fadas, à atualidade deles que, não por acaso, coexistem com a violência cotidiana. E as crianças? Parecem necessitar subsídios para compreender o complexo mundo adulto, das normas, das punições, da heteronomia… E muito mais efetivos do que sermões, do que lições moralistas, do que regras arbitrárias, estão os atrativos contos de fadas.

Dominar um problema significativo somente para ela a faz lutar pela resolução de determinado conflito, mesmo que por hora inconscientemente, já que desconhece o motivo que a faz ficar tão maravilhada diante de determinado enredo que traz, subjacente, mensagens significativas. Portanto, não podemos estipular idade, tampouco época para a qual um conto de fadas seja ideal. Contudo, há uma asserção a ser feita: de que estes favorecem o desenvolvimento da personalidade infantil, bem como fortalecem seu emocional, ao contrário das barreiras super protetoras que por vezes insistimos em instaurar.

Contar contos aproxima gerações
Contar contos aproxima gerações

Para Bettelheim, o crescimento acarreta problemas psicológicos, superação de decepções de cunhos diversos; o que faz com que a criança sinta uma necessidade de compreender o seu eu inconsciente. Essa compreensão dá-se de uma maneira demasiadamente complexa, alheia à superficialidade da razão, mas através da reorganização do imaginário, dos devaneios, do conteúdo inconsciente unido às fantasias conscientes. Aí estaria, portanto, o valor ímpar de um conto de fada: imagens sugestivas, dimensões imaginárias que por si só talvez a criança pequena não tenha recursos cognitivos para alcançar.

Ao observarmos grupos de crianças em momentos de narrativa, é absolutamente nítido o fato de que estas ingressam em um mundo imaginário, exercendo o denominado jogo simbólico, ou seja, entrando em contato com um universo fantástico no qual misturam realidade e ficção. E como sentem prazer em fazer parte desse universo! Não é à toa que inúmeros autores sentem-se atraídos por estudos voltados ao universo da literatura infantil…

Diferentemente de nós, as figuras nos contos de fadas não são ambivalentes, boas e más simultaneamente. Enquanto uma personalidade representa o bem, a outra representa o mal (“maniqueísmo”)- o que faz com que a criança as distinga facilmente, o que certas vezes torna-se “camuflado” na vida real.

A escola de Educação Infantil deve dotar de acervo qualificado, bem como, estar preparadas para trabalhar a literatura de modo valorativo. Se confia na escola de seu filho, certamente a escolha do repertório será adequado, não devendo, literalmente, julgar um livro por sua capa!

As escolas de Educação Infantil devem estar dotadas de amplo repertório literário, bem como ter ferramentas para trabalhar os sentimentos das crianças
As escolas de Educação Infantil devem estar dotadas de amplo repertório literário, bem como ter ferramentas para trabalhar os sentimentos das crianças

Se voltarmos ao austríaco Bettelheim, mais especificamente em sua obra A psicanálise dos contos de fadas, veremos que ele também relata sobre a identificação das crianças com determinada personagem ou história infantil. Afinal, reconheceu a importância dessas histórias no desenvolvimento integral desta criança que busca significados para seus próprios dilemas através da temática subjacente àquela determinada situação. Esta acabaria por auxiliá-la na vivência e encontro de significados implícitos e relacionados ao seu contexto real. A imagem, o contexto simbólico seria uma maneira motivadora de ativar sua compreensão, sua lógica.

Vejamos a situação que não se modifica: ao nos depararmos com uma criança, seja no contexto familiar ou escolar, requisitando a mesma história por inúmeras vezes, é fácil observarmos que ela obtém prazer em compreender determinada problemática do enredo, em dominá-la, em antecipar seus perigos, em vivenciar o medo inicial, em saber controlá-lo – fazendo e aprendendo esse processo ao longo da repetição das histórias.

A repetição das histórias é uma forma saudável de controlar as situações
A repetição das histórias é uma forma saudável de controlar as situações

Nesse ponto, percebemos a remanescente importância do contador de histórias, seja ele representado pela mãe, pelo pai, educador etc. Como bem sabemos, a criança adquire seus hábitos também por imitação, sendo assim necessário que o adulto-modelo desempenhe tanto o seu papel de leitor (para si), quanto de contador de histórias, que lhe confira vida, que lhe empregue alma, a ponto de não transformar o maravilhoso numa mera leitura insípida.

Contudo, cabe ao adulto permitir que a criança vivencie a história, sem interpretá-la para ela, sem quebrar-lhe o encanto explicando-lhe o motivo pelo qual ela é tão atrativa, privando-a de compreender seu conflito interior, de dominar a problemática da história por si só.

Em grupos de crianças em idade maternal (absolutamente contemporâneas, à propósito!), ao contemplar a leitura da história “Os três Porquinhos”, por exemplo, é possível verificar que há sempre a criança que solicita a repetição, sob aprovação unânime dos demais. Os pequenos reproduzem os movimentos, simulam o bufar do lobo, enquanto outros, atentos, escondem-se nas suas aparições – mas assim mesmo sentem prazer em temê-lo.

E não é por acaso, afinal, permitir-se ser o dominante de determinada situação é uma sensação no mínimo prazerosa, não apenas para os que realmente os são, mas para aqueles que gostariam de senti-lo, uma vez que a situação real nem sempre os permite vivê-lo.

A professora seleciona contos e narrativas de acordo com necessidades etárias
A professora seleciona contos e narrativas de acordo com necessidades etárias

É também possível observar o uso de expressões recorrentes entre as crianças, como “Era uma vez…”, “E viveram felizes para sempre!”, “Em um reino bem distante…” empregadas em todo o tipo de história, além de narrativas verídicas de suas vidas. A incorporação do mundo fantástico ao mundo real é fato inegável.

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Além disso, há o uso de recursos de marcação temporal, que organiza o pensamento e atribui sequência lógica a seus recontos: “E então…”, “Daí veio o lobo e…”, “Depois de tudo isso…”, “Finalmente apareceu…” etc, sem citarmos a questão da memorização de falas significativas: “Entrar nessa casa, ora, nem pensar…”; “Eu vou soprar, bufar, e esta casa vai voar…” etc.

Em experiências como essa, observei que os pequenos não se preocupam com a moral, com o que é errado, com aquilo que é socialmente imposto. Meninos passavam-se por personagens femininas, usando acessórios e roupas característicos sem restrição alguma e o contrário também.

As personagens que habitam o imaginário infantil as fortalecem emocionalmente
As personagens que habitam o imaginário infantil as fortalecem emocionalmente

Portanto, como vimos, cabe-nos valorizar e permitir, mais do que nunca, que as crianças encontrem nos contos de fadas e enredos diversificados aquilo que as fascina, que lhes fale em linguagem real e acessível o que é real e significativo para elas fora do nosso tempo e nosso espaço determinados.

Assim, para compreendê-los, é necessário antes de tudo compreender-se como sujeito repleto de emoções em um mundo às vezes dificultoso, e não tentar ingenuamente esquivar-se dos sentimentos e conflitos. Afinal, eles sempre existiram e existirão! Vide os fascinantes recontos dos pequeninos e verás que, por mais assustadoras que sejam as ameaças da sociedade moderna, ainda assim, para os pequenos, é possível “viver feliz para sempre”!

Para saber mais:

BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

BORGES, Maria Luiza X. de (trad.). Contos de Fadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004

COELHO, Nelly Novaes. O conto de fadas. São Paulo: Ática, 1987.

VON FRANZ, Marie Louise. A interpretação dos contos de fada. São Paulo: Paulinas, 1990.

About the Author

A autora do site é nascida na cidade São Paulo, e o Curso Normal/ Magistério foi a primeira opção na área docente antes do ingresso na faculdade de Letras da USP, onde concluiu a dupla habilitação português/ alemão em parceria com a EDUSP. Em seguida, cursando pedagogia e a primeira especialização em Moralidade e Relações Interpessoais na Escola, a formação continuada prosseguiu como uma premissa maior, com cursos como Psicopedagogia, Neuropsicopedagogia, Psicomotricidade e especializações como Bilinguismo e Educação Infantil. Atualmente, também é mestra em Ciências da Educação. Paralelamente, atuou continuamente na Educação Infantil, onde se estabeleceu há mais de 20 anos, assumindo diversas funções até atuar na diretoria de segmento. Também ofereceu diversos cursos e formação por meio de assessoria pedagógica especializada, é ávida leitora, apaixonada pela experiência educativa de Reggio Emilia e considera-se uma eterna aprendiz, seja em contextos locais ou internacionais.

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